terça-feira, 26 de agosto de 2014

Último dia

Seu Deus custou a acordar em sua vida.
Se a sua existência inteira fosse resumida a um dia
Eu diria que já são quatro da tarde.
Eu ainda estou dormindo na minha derradeira alvorada
Nenhum Deus me acordou ainda
Ao contrário, acho que algum está dormindo ao meu lado...

Passei do estágio de crença no Todo Poderoso inabalável
Para o estágio em que não acredito nem mais em mim
Pois enxergo os dias como se fossem noites
E os seres humanos como se fossem monstros mitológicos:
Orcs, Trolls, Ogros, Goblins e Dragões
A devorarem-se e aglomerarem-se em cavernas
Nos morros e nos vales, onde vez por outra,
Aparecem aventureiros de farda, matando os moradores
E empilhando o pouco tesouro das aldeias hostis ao sistema.
Onde estamos erguendo os nossos castelos?
Nos asfaltos! Ahh, e como era bom ter paisagens verdes
E riachos nas pradarias e nas savanas e nos mangues!
Hoje só temos brita, óleo preto e concreto.
Eu julguei ser bom o suficiente para viver só
Ela retrucou como se houvesse salvação!
Sal-va-ção! Quem nos quer a todos?
Que Deus cria o caos para dar risada do interior d'algum mausoléu?
Não há tronos no azul, só planetas, estrelas, corpos celestes...
Tá, isso Ele criou bem, com uma caixa preta danada
Indecifrável para os monstros aqui da terra.
(Acho que sou um Orc, mas não inventaram espelhos ainda...)
Quem são os grandes-babacas-senhores-dos-castelos-do-asfalto?
Quem são as suas senhoras, escrotas-senhoras-madames?
Paciência é uma virtude que eu não possuo!
Quero me amotinar com meus companheiros de aldeia,
Orcs, Trolls, Goblins e Ogros contra os Dragões!
Reze a Odin. Reze a Ogum. Reze a Alah. Reze a Grummsch. Reze por nós!
O Deus das equações-do-Universo, qualquer que seja Ele,
Que nos proteja e guarde contra a opressão dos poderosos.
Meu último dia é um delírio sombrio
Sem vales, sem rios, sem cachoeiras, sem esporte, sem beleza.
Beija-me docemente a meia noite, todas as noites,
Mas hoje, é hora de dormir.

Carnívoro amor


Tanto fiz por fazer sem sentido
Que me sento hoje só, a pensar
Em estes tempos de lembranças, já idos
Minha confissão frente ao espelho:
“- Eu te amo! Eu te amo! E como te amo!”.

Mas não há verdade na mentira – processo de convencimento
Não conheço o amor e nunca o conheci – fato!
Tive um tesão que me saltava à pele
Trespassava meu corpo sem pedir licença
E todo o resto era gozo, gritos e volúpias,
Como se a minha essência fosse a cama,
O meu corpo fosse o corpo do outro
E o sexo a encarnação tardia da minha alma
Cada dia num corpo diferente,
Numa cama mais ou menos quente,
Num prazer mais ou menos inconsequente,
Usando corpos como peças de xadrez.

Eu sou o outro e nada mais.
Minha satisfação é o gozo alheio
Da mulher que geme e goza
E o seu esporro jorra sobre a minha carne quente
Como se fosse o meu corpo também o dela
E aquele instante de prazer infinito.
Eu preciso da vida agitada
A cama desarrumada feito os meus cabelos.
Eu preciso das pernas depiladas – minhas e delas
Do batom borrado nos lábios nossos
E dos arranhões nas minhas costas.
E cada marca de mordida é um troféu – e eu os coleciono todos!,
E quero para mim o que houver de melhor.

Que abuso, molestar corações!






segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O deus dela


Ela reza com toda a fé do mundo,
E o Deus dela é poderoso.
Eu desconheço essa fé completa
Essa devoção ao sobrenatural.
Acreditar, sim, eu acredito em um Deus.
Meu Deus me dá toda a liberdade do mundo,
E Ele é divino, não se envolvendo com mesquinharias,
Não falando comigo, não está presente na matéria.
Meu Deus fez as equações que regem o Universo.
Alguns o chamam de força vital,
Princípio Inteligente de todas as coisas.
Eu o chamo sempre que posso em minhas orações,
E o nomeio Deus e imploro clemência para a minha ignorância.
Tenho fé nenhuma nos homens ou mulheres.
Tenho fé total nos homens e mulheres.
Sou um pecador que não acredita em pecados.
Não rezo pras coisas melhorares. Estou tão mal assim?
Ela reza com toda a fé do mundo.
E o Deus dela é poderoso.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O feijão


O grão,
João,
Preto, como o pé
De pedro
Pedreiro,
Sem pedra
No saco.
Escolhidos,
Os mulatinhos,
Branquinhos,
Os vermelhos,
Ou Cariocas...
Humm, que delicia!
Mil tons de preto
Ou vermelho
Ou branco.
Na panela
Jorrando a fonte
De ferro no prato
Do brasileiro
Naturalizado ou nato
Arquiteto
Ou artista
(Físicos não)
Malandro
Ou contorcionista
Malabarista
Que sobe e desce
Do pé do joão
Todo dia,
E depois,
Combina com o arroz,
O que nos mantém
De pé no dia a dia
E chamamos de trívia
O que só a nós
É normal
A mistura do preto
E do branco
Sendo europeu
Ou banto
No prato ou no pranto
A força da terra
Que dá a sustância,
Para o Brasil trabalhar.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Lasso amor vivente

Lasso amor vivente
Púdrido e aborrecente
Na vinha da manhã crescido,
Como nós, ainda jovem.

Muda, muda, muda
Ou transforma ou cresce.
E tudo em nós é menos ocre
Como um macio pão embolorado.
Verde-musgo, deteriorado
Tempo passa, leva a aurora
Rotos tempos de fantasia
Ainda somos nós nas fotos
Mas não nos vemos nos espelhos.

Não vês, Àurea,
Que amanhece hoje cinzento?
É pálido o sonho que tivemos
Mas não nos debruçamos sobre o verão
Esperamos a primavera
Sem regar nossos jardins.

Nascerão vulgares flores
Lírios liláses, esquálidas pétalas.
Porcas lembranças
Parcos lamentos cabisbaixos,
Assim, desvanecimentos frugais
Feito fome de algo novo e reluzente.

Quanto adjetivo para o amor!
Abra a porta, Áurea,
Veja-me ir embora.
Abra-me teus braços nesse acesso
A loucura nunca é bem vinda.
Mas todo louco é leve
E breve são os nossos suspiros.
Digo Adeus.













Carteiros


Todos os dias soam os sinos,
São dez da manhã – quase um despertador,
Passa apressado, ora aqui, ora acolá
Sempre com os pedais barulhentos e soltos
Da sua precária bicicleta azul e amarelo.
Deixa-me o papel sagrado que vem de longe,
Ou o profano, que sempre vem de perto.
Alguns dias parecem cômicos e rimos juntos
Mesmo desperto pelo seu pedalar
Traz boas notícias, coisas de quem espera
E, quando cessa o sofrimento,
Daqueles que olham para o horizonte com pressa
Parece que o moço de azul e amarelo é um Deus,
A Boa-Nova, um anjo empacotado na forma humana
Hermes incumbido de rejubilar corações.
Meu endereço ali é rotina, recebo muitas cartas
- Ou seriam muitas contas? Esqueça!
Percebo uma vez ou outra que os carros e motos
São pra velhos senis, não pra mim.
Também quero ser Carteiro, pedalar
Ter pouco tempo pra decorar nomes e números
Ser portador de notícias e não da verdade!

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Francisco

Ainda moço se afogou Francisco,
As mãos vazias, abertas e agitadas
Sem os melhores sonhos impossíveis.
Debatia-se.
Arranhava a água.
Estava doente. Colérico, talvez.
A tez estava vermelha como se ardesse,
Um belo contraste com a água fria.
Um Rio. Pele enrugada.
Morreu e estava só.
Um mar distante guarda-lhe o corpo.
Lá no fundo, entre os peixes e navios afundados.
Mas isso já foi há tanto tempo,
Deve ter só ossos e lembranças a essas horas.
Frio. Cadavérico. Esquelético. Mãos ainda vazias.
Não dava nada a ninguém.
Não pedia nada a ninguém.
Não era injusto e nem justo.
Era simples, pobre e abastado e nobre.
Não era nada e nem ninguém. Contraditório.
Tornou-se a pior parte da história de alguém:
Passado.
Só o passado bom traz saudades.
Saudades doem.
Passado ruim não traz saudades. Por isso é ruim.
Por isso Chico sofreu na morte.
A morte passa.
O corpo fica nalgum lugar.
A memória fica.
Tornou o assoalho marinho um prato.
Bebeu o mar como se tivesse uma xícara.
E agora, finalmente, tem a ciesta.